Capa

Capa
Essa é a capa do material produzido para o Ensino Médio e Vestibular

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Texto complementar sobre Estratificação Social

Sendo referente de um velho e novo tema, estratificação social constituiria, segundo alguns, um conceito abrangente que incluiria quer a teoria de classes marxistas, quer outras teorias não marxistas, nomeadamente a estrutural-funcionalista. Uma tal concepção ampla assume que os sistemas de estratificação têm sido uma constante em todas as sociedades, desde as caçadoras e as recoletoras, passando pelas sociedades de castas, despóticas e estamentais, até às modernas – industriais. Importa, porém, revelar que, enquanto, na maioria das sociedades não modernas, a estratificação era percebida como algo inerente à ordem “natural” das coisas, na época moderna, nomeadamente após a Revolução Francesa e outras contemporâneas, tal pressuposto “naturalista” sofreu um sério abalo teórico, nomeadamente a partir do pensamento rousseauniano.
A designação de estratificação social, metaforicamente aplicada às Ciências Sociais, remete-nos para uma realidade estudada pela Geologia, que diz respeito à disposição de diversas camadas da Terra ordenadas em posições diferenciadas e verticais. É nesta ótica que, em termos sociológicos, diversos autores (Sorokin, Davis, Moore e Parsons) definiriam estratificação social como a diferenciação de determinada população em estratos hierarquicamente sobrepostos, desde os inferiores aos superiores. Mas, desde o início, o uso do termo estratificação, nomeadamente por parte dos teóricos estrutural-funcionalistas, pressupõe critérios mais normativos que materiais de descrição e classificação dos grupos sociais nas sociedades designadamente contemporâneas, os quais se opõem diametralmente aos sustentados pela teoria marxista em torno das classes. Este dilema obriga-nos a equacionar duas grandes tradições sociológicas, em contraste, não só quanto ao número de classes, como sobretudo quanto à própria definição de estrato/classe: uma de inspiração estrutural-funcionalista, mas fortemente acentuada desde os anos 50, e uma outra, a marxista, que, não obstante variantes internas, é sustentada desde os fundadores do marxismo, no século XIX, até ao presente.
Quanto a tradição (estrutural-)funcionalista, as sociedade e os respectivos estratos ou grupos são definidos e caracterizados em função do rendimento, do nível de instrução, do prestígio ou mesmo da própria percepção dos atores sociais, sem se preocupar em estabelecer as caudas ou então remetendo o fenômeno da estratificação para os seguintes fatores “explicativos”, eventualmente interligados:
I – para a maior ou menor importância das diversas funções, preenchidas de acordo com o treino, a competência e o talento dos indivíduos nas respectivas tarefas da divisão do trabalho;
II – para fatores hierárquicos de ordem normativa e valorativa, sendo os atores sociais hierarquizados, sancionados, recompensados ou remunerados de acordo com o grau de identificação com as normas e os valores comuns, os grupos de referência e as variáveis-padrão existentes em cada sociedade, nomeadamente o critério meritocrático na sociedade moderna;
III – para as leis da oferta e da procura inerentes à economia de mercado, as quais, na versão (neo)liberal, permitem estabelecer a distribuição do rendimento, do prestígio, da influência e, em última instância, do poder. No campo marxista, embora hoje haja autores (neo)marxistas que evitam um conceito economicista de classe social, sustentam, acerca desta, um conceito pluridimensional e até estabelecem criativamente algumas pontes teóricas com o weberianismo. Para a concepção marxista tradicional, a classe era basicamente analisada a partir do lugar ocupado pelos atores sociais no sistema econômico, ou, mais precisamente, no/ou em face do processo de produção.
Já Weber, porém, sendo sem dúvidas o autor que forneceu uma visão tridimensional da estratificação (econômica, social e política), pode ser considerado o sociólogo mais abrangente na necessária síntese a operar entre critérios subjacentes a teoria da estratificação e à teoria das classes sociais. Através do conceito de estamento/estatuto (stand), Weber releva o grau de estima, honra e prestígio como critério social de aferição do sentimento de pertença a determinado grupo e seus correlativos modos ou estilos de vida, eventualmente exercidos em círculo fechado (por ascendência, profissão, educação, etnia ou religião) e expressos em diversas formas; através do conceito estrito de classe designa o critério econômico da distribuição de poder de disposição entre bens, serviços, qualificações e outros recursos, nomeadamente as capacidades aquisitivas nos diversos tipos de mercados; e, através do conceito de partido, dá conta da distribuição do poder político (elites, camadas dirigentes).
Neste quadro, poder-se-á objetar que o conceito estrutural-funcionalista de estrato é insuficiente, na medida em que não fundamenta por que é que determinadas funções são mais importantes que outras, como e porque é que há uma desigual distribuição de talentos, além de outros serem desperdiçados por falta de recursos. Por outro lado, além de o sistema de valores não ser partilhado por todos os atores sociais no seio de determinada sociedade, as diferenças de salários e recompensas nem são explicáveis por fatores normativos, nem sempre dependem da oferta e da procura, mas reconduzem-se a razões institucionais ou situações de privilégios em base econômica, política ou religiosa (por herança, situação de classe, casta, hierarquia religiosa ou política).

terça-feira, 12 de maio de 2009

Marx e pensamento sociológico

A obra do alemão Karl Heinrich Marx (1818-1883) marcou como um corte de navalha o pensamento ocidental do século XIX. Seu objeto de pesquisa fundamental, para não dizer o único, foi a sociedade capitalista de seu tempo. Ele olhou à sua volta e percebeu que, para além dos sinais aparentes de miséria e sofrimento das classes trabalhadoras – esses qualquer um que caminhasse pelas ruas das grandes cidades industriais podia ver – havia um processo histórico em curso que, enquanto levava a burguesia à condição de classe dominante, expropriava dos trabalhadores manuais seus instrumentos de produção e seus saberes, transmitidos com zelo de geração para geração através dos séculos, ao tempo da velha ordem feudal. Perceber este ponto talvez seja o grande diferencial da sociologia de Marx.
Mas devo adverti-lo desde logo, caro leitor, que o pensamento de Karl Marx não se adequa facilmente ao rótulo de "sociologia". Pois a sociologia é uma disciplina científica e empírica, de caráter analítico. E Marx combinou em seu pensamento duas perspectivas diferentes, dois modos diversos de encarar a realidade. Por um lado seu pensamento é analítico, isto é, pretende ver a realidade como ela é, dissecando-a e reconstruindo-a conceitualmente para entendê-la. Nesse sentido, ele foi um praticante das ciências sociais (a sociologia, a história e a economia política). Por outro lado, seu pensamento é normativo, isto é, pretende vislumbrar como a realidade deveria ser, construindo uma utopia em nome da qual seria necessário agir para transformar esta realidade, valorativamente caracterizada por ele como iníqua. Nesse sentido, ele fazia filosofia. Aliás, Marx não era apenas um pensador. Era também um militante político, que pretendia colocar suas idéias em prática através de um partido político. Mas não se conformava em propor o socialismo como uma opção entre tantas outras. Seu socialismo era "científico", e sua ciência lhe dizia que o socialismo estava fadado a triunfar.
Para ele não havia contradição entre teoria e prática, nem entre o modo como as coisas são e o modo como devem ser. Pelo contrário, se a sociedade verdadeiramente humana "deve ser" um dia uma sociedade sem exploração e opressão, é porque esta possibilidade está dada já agora, no modo mesmo como a sociedade presente "é". A contradição para Marx não é uma falha do raciocínio lógico, é o modo pelo qual a realidade se expressa, e o futuro desejado está contido no presente odioso.
Tá confuso? Calma, eu explico.
Para chegar ao entendimento da sociedade capitalista, Marx julgou necessário descobrir como a história humana funciona, desde os primórdios da civilização até seus dias. Nada menos que isso. E acreditou de fato haver descoberto este mecanismo. Como disse o amigo e parceiro intelectual Friedrich Engels (1820-1895), num discurso proferido no enterro de Marx, assim como Darwin havia descoberto as leis da evolução das espécies, Marx havia descoberto as leis da história. Nesse sentido, a pretensão de Marx se assemelha muito à de Durkheim: o fundamental para as ciências sociais é que sejam capazes de enunciar leis que tenham tanta validade geral quanto as leis da física ou da biologia.
Bem, mas que "descoberta" era essa? O enunciado da lei da história, segundo Marx, seria algo como o seguinte: "o que move a história é a luta entre as classes sociais". Compreendendo esta chave, o investigador (e, principalmente, o transformador) social compreenderia a natureza da sociedade capitalista e a direção na qual ela estaria se transformando, graças a suas contradições internas. Como a luta entre as classes chegou então a constituir-se em motor da mudança histórica?
As leis da história.
Marx e Engels escreveram que a história humana é a história da relação dos homens com a natureza e dos homens entre si. Nesses dois tipos de relação aparece como intermediário um elemento essencial: o trabalho humano.
É através do trabalho que o homem muda a natureza, colocando-a a seu serviço. Ele planta, colhe, caça, pesca, enfim vive através de seu trabalho. Na medida em que o ser humano se reproduz, através das relações sexuais entre homem e mulher, esse processo se expande pelo aumento natural da população. Ao mesmo tempo, para melhor desencumbir-se de sua tarefa de produção da vida material o homem desenvolveu instrumentos de trabalho, que cada vez mais foram funcionando como extensões e como aumento das capacidades do corpo humano. Em vez de cortar ou quebrar com as próprias mãos, inventou a machadinha de pedra, depois de metal cortante etc. Domesticou animais para fazer o trabalho mais pesado, desenvolveu técnicas de cultivo (como irrigação ou escolha de terrenos) para potencializar os resultados de seus esforços. Com seu gênio, com a capacidade de raciocinar que falta aos outros animais, o homem foi cada vez mais sendo capaz de aumentar e melhorar os resultados obtidos pelo trabalho que realizava com o suor de seu rosto. Nesse processo, trabalho manual e reflexão intelectual jamais se separaram, embora – como apontarei mais abaixo – o predomínio de certos grupos de homens sobre outros ao longo da história tenha gerado uma distorção no modo como os homens tomam consciência da relação entre o mundo material e o mundo das idéias. O ser humano, assim, desenvolveu ao longo da história, cada vez mais, aquilo a que Marx e Engels deram o nome de "forças produtivas". O desenvolvimento das forças produtivas foi o responsável pelo incremento da produtividade e pelo aumento do domínio do homem sobre a natureza, bem como pelo conforto e pela riqueza material decorrentes, que as sociedades acumularam ao longo da história. E, note bem, forças produtivas não são apenas machadinhas e arados, mas também as tecnologias desenvolvidas pela capacidade reflexiva do homem.
Mas não apenas isso. Ao mesmo tempo em que o trabalho é o intermediário da relação do homem com a natureza ele é, também, o intermediário da relação dos homens uns com os outros. Porque o trabalho que são obrigados a desenvolver para sobreviver dita o modo pelo qual as sociedades humanas se estruturam. Para aumentar a produtividade social, para desenvolver as forças produtivas, o homem foi também organizando a produção junto com seus semelhantes, distribuindo tarefas e benefícios entre os membros da sociedade. Foi este o ponto de partida do processo de divisão do trabalho. Primeiro, a divisão sexual, entre o trabalho de homens e mulheres. Depois, a divisão entre a agricultura e a criação de animais. E, assim por diante, foi se dando a divisão entre o campo e a cidade, entre a produção agrícola e a industrial, entre esta e o comércio etc. Nesse sentido, como esta organização da produção advém da capacidade humana de racionalizar tarefas no sentido do aumento da produtividade social, a divisão do trabalho é também parte do conjunto das forças produtivas. Ambas, divisão do trabalho e forças produtivas, ao mesmo tempo determinam-se e são determinadas uma pela outra.
Mas a divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas: fulano faz isso, beltrano aquilo. Não. Ela é também a expressão da existência de diferentes formas de propriedade no seio de uma dada sociedade num dado tempo histórico. As relações de propriedade, por sua vez, dizem respeito aos tipos de relações sociais predominantes numa sociedade a partir dos tipos de propriedade vigentes. Do ponto de vista de Marx, elas implicam numa separação básica: entre os instrumentos ou meios utilizados para o trabalho, de um lado, e o próprio trabalho, de outro. Isso significa que no processo de divisão do trabalho nem sempre os homens que possuem os meios para realizar o trabalho trabalham e nem sempre os que trabalham possuem esses meios. As relações de propriedade, portanto, são a base das desigualdades sociais, na medida em que a divisão do trabalho possibilitou a existência de homens que trabalham para os outros, porque o fazem com os meios de outros; e de homens que não trabalham por que têm meios e podem fazer com que outros trabalhem para si. A esses modos específicos de organização do trabalho e da propriedade Marx e Engels deram o nome de "relações sociais de produção".
Cada época histórica possui um conjunto de forças produtivas desenvolvidas, sob o controle dos homens que nesta época vivem e, ao mesmo tempo, um conjunto instituído de relações sociais de produção, que são o modo pelo qual os homens assumem o controle sobre as forças produtivas, isto é, as relações de propriedade. A este conjunto total, Marx e Engels chamaram "modo de produção".
Assim, as grandes transformações pela quais passou a história da humanidade foram as transformações de um modo de produção a outro. Simplificadamente, podemos dizer que nossos autores descrevem três diferentes modos de produção ao longo da história: o modo de produção escravista antigo (Grécia e Roma antigas, onde o trabalho era realizado por escravos), o modo de produção feudal (vigente no mundo medieval) e o modo de produção capitalista. A cada um desses modos de produção correspondem diferentes estágios de desenvolvimento das forças produtivas materiais e diferentes formas de organização da propriedade (ou relações sociais de produção). No primeiro, a relação social básica é a escravidão, que opõe escravos e senhores de escravos; no segundo a relação social básica é a de servidão, que opõe servos de gleba e senhores feudais e no terceiro a relação social fundamental é a de assalariamento, que opõe capitalistas e operários, isto é, burgueses e proletários. Dessas diferentes relações de propriedade, ou melhor, da posição dos homens com relação às formas de propriedade vigentes num dado modo de produção é que surgem as classes sociais.
A transformação de uma forma a outra, de um modo de produção a outro, se dá pelos conflitos abertos por causa da luta entre a classe dominada e a classe dominante em cada época. Marx diz que as relações sociais de produção, isto é, as formas de propriedade, quando se estabelecem, funcionam como uma forma de desenvolvimento das forças produtivas, mas chega um momento em que as forças produtivas não mais conseguem se desenvolver sob a vigência daquelas relações de propriedade. Abre-se então um período de convulsão social, no qual as relações de propriedade vigentes são contestadas. A classe oprimida, política e/ou economicamente dominada, se insurge contra o predomínio da classe dominante. É por isso que nossos autores afirmam que o que move a história é a luta entre as classes.
As formas de consciência.
Nessa explicação genérica da teoria da história de Marx eu só lhe expus, até aqui, o aspecto relacionado com as formas de produção material e de organização da estrutura social dela decorrente. Mas como o trabalho e a reflexão do homem, como já sublinhei, são faces da mesma moeda ao longo da história, a teoria de Marx se propõe também a explicar de que modo o mundo das idéias, do conhecimento, das crenças e das opiniões se relaciona com este mundo material, da produção, do trabalho. Marx e Engels se vêem então diante da seguinte pergunta: como explicar a consciência que os homens têm ou deixam de ter a respeito de seu próprio modo de vida, da produção material de sua sociedade e das relações de classe, sejam elas econômicas ou políticas?
A consciência está ligada às condições materiais de vida, ao intercâmbio econômico entre os homens, como já vimos. Mas a consciência que os homens têm dessas relações, afirmam nossos autores, não condiz com as relações materiais reais que de fato vivem. As idéias, as concepções sobre como funciona o mundo, são representações que os homens fazem a respeito de suas vidas, do modo como as relações aparecem na sua experiência cotidiana. Essas representações são, portanto, aparência. Para Marx essas representações implicam, num primeiro momento, numa falsa consciência, numa consciência invertida, pois se prendem à aparência e não são capazes de captar a essência das relações às quais os homens estão de fato submetidas.
Se estiver muito complicado, não desanime agora. Vou lhe dar um exemplo prático e claro dessa falsa consciência que acabei de mencionar no parágrafo acima. Quando se estabelece na história uma determinada forma de divisão do trabalho, quando ela se torna dominante e generalizada dentro de uma sociedade, ela estabelece o lugar de cada um dentro do processo produtivo. Assim, as relações de propriedade vigentes, o poder político de certos grupos sobre outros e as formas de exploração do trabalho que uma determinada classe social consegue implantar numa determinada época histórica estabelece e determina, o que cada indivíduo está obrigado a fazer, o modo como está obrigado a trabalhar e viver. No capitalismo, diz Marx, existem os proprietários dos meios de produção (as fábricas, as máquinas e a própria força de trabalho do trabalhador). Estes são obviamente os burgueses. E existem aqueles a quem não resta outra alternativa de vida a não ser vender o único bem de que dispõem: sua força de trabalho, em troca do pagamento de um salário. No entanto, na cabeça dos homens que vivem sob este sistema, isso é percebido, no plano das idéias, como algo normal, natural. Ao trabalhador lhe parece natural que certas pessoas tenham que trabalhar em troca de um salário para viver, como se isso sempre houvesse existido e, mais ainda, como se tivesse que continuar existindo para sempre. Este indivíduo não vê a sociedade capitalista como uma sociedade historicamente construída pela luta entre uma classe com intenção de ser a classe dominante (a burguesia) e outras classes, que acabaram sendo submetidas a esta classe dominante, transformando-se em proletariado. Não. À medida que o tempo passa e a sociedade capitalista se estabiliza, ela é percebida pelas pessoas, na vida cotidiana, como a única sociedade possível. Assim como em outros tempos, a sociedade feudal, por exemplo, foi percebida pelos homens como a única sociedade possível (durante séculos, num intervalo de tempo aliás bem maior que a duração do capitalismo).
Repare aqui uma diferença fundamental entre Durkheim e Marx. Durkheim nos mostra o peso da sociedade sobre os indivíduos, aponta que a consciência individual é dada pela preponderância de uma consciência coletiva, que os indivíduos não pensam com sua própria cabeça. Marx, por sua vez, mostra que isso não é assim simplesmente porque qualquer sociedade de homens deve necessariamente ser exterior e coercitiva sobre os indivíduos. Ele mostra que o caráter coercitivo, dominador, não se manifesta igualmente por parte "da sociedade em geral" sobre todos os homens indistintamente, mas sim de uma parte da sociedade sobre outra, ou melhor, de uma classe social que assume o papel de dominante sobre as outras, que se tornam dominadas. E que esta situação não está ali desde que o mundo é mundo, mas que ela foi criada pela luta histórica entre as classes sociais. Marx afirma que, se as relações de dominação existem em toda e qualquer sociedade é porque elas são socialmente construídas. E, portanto, não precisam existir para sempre, pois o homem pode construir outros tipos de relações, sem a dominação de uma classe sobre outra. Mas percebe no entanto que os homens, no seu universo cotidiano, dentro do qual estão submetidos a este processo de dominação, não têm uma consciência real da dominação de que são objeto.
Pensemos no processo de passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, para que não reste dúvidas sobre isso. A forma de produção de mercadorias no mundo feudal era o artesanato. Como resultado de uma enorme gama de transformações ocorridas entre os séculos XVI e XIX, o artesanato se transformou em grande indústria. Como isso se deu, do ponto de vista das relações de propriedade? No artesanato, o Mestre de Ofício – por exemplo um sapateiro – realizava todas as etapas da produção de seu produto. O Mestre Sapateiro curtia o couro dos animais, cortava, tingia, construía as fôrmas de madeira para a fabricação dos sapatos, costurava-os, pregava os solados, fazia o acabamento e, ainda, os vendia em seu estabelecimento. É claro que este era um processo lento e um número reduzido de pares de sapatos era produzido. Mas o Mestre Sapateiro tinha o controle de cada detalhe. Ele, como pessoa, sabia fazer sapatos e era este saber (somado aos meios materiais necessários para a fabricação de sapatos) que determinava o lugar que este homem ocupava no mundo e suas relações com seus contemporâneos. E de onde veio este saber? Ele aprendeu de um outro Mestre, muitas vezes seu pai, junto ao qual exercitou o ofício desde criança, na condição de aprendiz. Do mesmo modo ele ensinaria, depois de Mestre formado, o ofício a seus aprendizes, muitas vezes seus filhos.
Com o desenvolvimento do comércio, no entanto, uma nascente classe de comerciantes começou a ter pressa. Quanto mais sapatos vendidos, mais lucro. Os comerciantes passaram então a contratar fabricantes de sapatos e reuni-los em galpões onde pudessem fiscalizar a produção e cobrar a agilidade necessária. Ao fazerem isso, começaram a entender o processo de fabricação do sapato e perceberam que seria possível agilizar a produção se as tarefas fossem divididas entre os trabalhadores. Cada um faria apenas uma etapa, pois seria bem mais ágil apenas cortar o couro, ou apenas costurar, repetidas vezes, em vez de todos realizarem todas as etapas e passarem de uma tarefa a outra. E seria bem mais simples, também, que os novos trabalhadores que iam sendo contratados tivessem que aprender uma tarefa só, em vez de aprender o processo todo. Juntou-se a esta mudança um outro dado fundamental. Com o desenvolvimento tecnológico daqueles séculos, o XVIII e o XIX principalmente, foram criadas máquinas novas para aumentar a produção. A princípio essas máquinas dependiam do uso que o trabalhador fazia delas, mas com seu aperfeiçoamento, as máquinas começaram a ditar o ritmo da produção, sendo o trabalhador obrigado a operar no ritmo da máquina e não a máquina a operar no ritmo do trabalhador.
Agora pense o que aconteceu, não só com os sapateiros do exemplo, mas com todos os ramos da produção material, entre o tempo do artesanato e o da grande indústria. O que aconteceu, para Marx, é que os trabalhadores foram duplamente expropriados pelos capitalistas, isto é, deles foram subtraídas duas coisas: os meios de produção da vida material e o saber do qual dependia a fabricação de um produto e a própria posição social do artesão. Eles eram auto-suficientes e passaram a se tornar dependentes dos capitalistas. Primeiro, porque não tinham mais os meios materiais de vida, e foram obrigados a vender sua força de trabalho em troca de um salário. E depois porque não saberiam mais como produzir por conta própria se tivessem esses meios materiais, já que foram obrigados a reduzir sua capacidade de trabalho a tarefas simples e parciais. Este saber foi apropriado e controlado pelo capitalista, que o desenvolveu e racionalizou. Através da maquinaria industrial moderna e de posse desse saber, o capitalista reduziu o trabalhador à execução das tarefas simplificadas, parciais e repetitivas na linha de produção da fábrica. Assim, as forças produtivas foram enormemente desenvolvidas, mas através de um processo social de expropriação de bens materiais e de saberes.
Explicado assim, numa perspectiva histórica, pode até parecer convincente, mas a percepção dessa expropriação e o entendimento de suas conseqüências para cada um fica bloqueada pelo modo como o indivíduo adquire consciência do mundo social em que nasce e no qual cresce e morre. Ele só aprende que deve trabalhar para receber o salário e viver, pois esta é a percepção que ele tem da realidade na vida cotidiana. Existem as fábricas e seus donos. E ao trabalhador, que não é dono de coisa alguma, cabe trabalhar nelas. Ponto final. Por causa do salário pago, o trabalho, que é obra de cada ser humano, é compreendido como algo que não pertence a este ser humano. O trabalho, que sempre foi o meio pelo qual o homem relacionou-se com a natureza e com os outros homens, é individualmente percebido como algo sobre o qual o trabalhador não tem controle. O trabalhador foi separado, pelo capitalismo, do controle autônomo que exercia sobre seu trabalho e também do fruto deste trabalho. O trabalho é então percebido pelo trabalhador como algo fora de si, que pertence a outros. A isso, Marx dá o nome de alienação. Por causa do trabalho alienado a que estão submetidos, os homens adquirem uma consciência falsa do mundo em que vivem, vêem o trabalho alienado e a dominação de uma classe social sobre outra como fatos naturais e passam, portanto, a compartilhar uma concepção de mundo dentro da qual só têm acesso às aparências, sem ser capazes de compreender o processo histórico real. A isso Marx dá o nome de ideologia. A ideologia, portanto, é aquele sistema ordenado de idéias, de concepções, de normas e de regras (com base no qual as leis jurídicas são feitas) que obriga os homens a comportarem-se segundo a vontade "do sistema", mas – e isso é importante – como se estivessem se comportando segundo sua própria vontade. Esta coerção "do sistema" sobre os indivíduos, revela Marx, na verdade é a coerção da classe dominante sobre as classes dominadas. Por isso Marx afirma que a ideologia dominante numa dada época histórica é a ideologia da classe dominante nessa época.
Exploração econômica e opressão política do homem pelo homem sempre houve em todas as sociedades; só que no capitalismo há uma diferença. Em todas as outras formas de dominação histórica anteriores, o dominado sabia que era dominado e sabia quem era seu dominador. O escravo sabia que seu senhor o mantinha em cativeiro e o obrigava a trabalhar para si a força, o servo sabia que o dono do feudo lhe arrancava a maior parte do que ele plantava e colhia. No capitalismo, ao contrário, o trabalhador acha que é justo que ele seja separado do fruto de seu trabalho mediante o pagamento do salário. O máximo de injustiça contra a qual o trabalhador normalmente se revolta diz respeito aos salários baixos e às condições ruins de trabalho (jornadas longas demais, insalubridade etc). Marx diz, porém, que o salário não remunera todo o trabalho realizado, mas apenas uma parte dele. A outra parte é apropriada pelo capitalista e se transforma em lucro. Em resumo, a teoria de Marx e Engels afirma que qualquer salário é injusto porque a relação de assalariamento é injusta em si. É injusta porque separa o trabalhador do resultado de seu trabalho e isso o aliena e o descaracteriza como ser humano. E mais ainda: essa injustiça não pode ser percebida pelo trabalhador (com base em sua própria experiência na vida cotidiana) por causa da ideologia, que é uma concepção de mundo gerada pela classe dominante e assumida pela classe dominada como se fosse sua. A suprema ironia do capitalismo é que o dominado pensa com a cabeça do dominador, e essa é a forma de dominação mais visceral. No capitalismo, os trabalhadores dormem com o inimigo, confortavelmente instalado em sua própria mente, todos os dias sem saber. É quase como se houvesse em seu cérebro um chip perverso de computador, desses de filme de ficção científica, que o obrigasse a levantar no outro dia e levar sua vida da mesma forma que no dia anterior.
Mas Marx e Engels não faziam ficção científica. Eles, ao mesmo tempo, tinham fé na ciência e alimentavam uma utopia. Por obra da ciência, acreditaram haver descoberto as leis da história. Essas leis lhes diziam que chegaria um momento em que o desenvolvimento das forças produtivas proporcionado pelo capitalismo inevitavelmente entraria em contradição com as formas capitalistas de propriedade e que, quando esse momento chegasse, se abriria uma época de revolução social e política. E aí entra sua utopia: eles acreditavam que esta revolução – à qual se seguiria uma fase de transição em que os resquícios da sociedade capitalista seriam destruídos (a fase do socialismo) – esta revolução daria origem a uma nova sociedade, sem exploradores nem explorados, sem alienação e sem ideologia, sem classes sociais e sem Estado (porque o Estado para eles é uma manifestação das relações de classe, e deixaria de existir quando as classes não existissem mais). Nessa nova sociedade, a sociedade comunista, sem dúvida a mais bela utopia do século XIX, o homem se reencontraria consigo mesmo, seria um ser autônomo, auto-centrado e auto-consciente, trabalhador manual e intelectual ao mesmo tempo. Daria à sociedade, por sua própria vontade, todo o esforço e trabalho que pudesse e receberia dela tudo o que precisasse, graças ao desenvolvimento material propiciado pelo capitalismo. Os homens e as mulheres seriam, enfim, seres humanos inteiros, completos. E, é claro, seriam felizes para sempre.

A Sociologia de Max Weber

Max Weber viveu numa época em que as idéias de Freud impactavam as ciências sociais e em que os valores do individualismo moderno começavam a se consolidar. A grande inovação que Weber trouxe para a sociologia foi o individualismo metodológico. Para ele, o indivíduo escolhe ser o que é, embora as escolhas sejam limitadas pelo grau de conhecimento do indivíduo e pelas oportunidades oferecidas pela sociedade. O indivíduo é levado a escolher em todo instante, o que faz da vida uma constante possibilidade de mudança. O indivíduo escolhe em meio aos embates da vida social. Essa idéia faz com que o sentido da vida, da história, seja dado pelo próprio indivíduo. Os processos não têm sentido neles mesmos, mas são os indivíduos que dão sentido aos processos.

Ação Social

Para Weber a sociedade não seria algo exterior e superior aos indivíduos, como em Durkheim. Para ele, a sociedade pode ser compreendida a partir do conjunto das ações individuais reciprocamente referidas. Por isso, Weber define como objeto da sociologia a ação social.

O que é ação social?

Para Weber ação social é qualquer ação que o indivíduo faz orientando-se pela ação de outros. Por exemplo um eleitor. Ele define seu voto orientando-se pela ação dos demais eleitores. Ou seja, temos a ação de um indivíduo, mas essa ação só é compreensível se percebemos que a escolha feita por ele tem como referência o conjunto dos demais eleitores.

Assim, Weber dirá que toda vez que se estabelecer uma relação significativa, isto é, algum tipo de sentido entre várias ações sociais, teremos então relações sociais.

A ação social, é a conduta humana dotada de sentido. O sentido motiva a ação individual.

Para Weber, cada sujeito age levado por um motivo que se orienta pela tradição, por interesses racionais ou pela emotividade.

O objetivo que transparece na ação social permite desvendar o seu sentido, que é social na medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou reação de outros indivíduos.

A ação social gera efeitos sobre a realidade em que ocorre.

É o indivíduo que através dos valores sociais e de sua motivação, produz o sentido da ação social.

A transmissão destes valores comuns de uma geração para outra é chamada socialização, que é uma forma inconsciente de coerção social. Ex. de valores sociais: respeito, virgindade, honestidade, solidariedade, etc

Só existe ação social quando o indivíduo tenta estabelecer algum tipo de comunicação, a partir de suas ações, com os demais.

Quando você vai à escola, isto é uma ação social. Não apenas porque ali você encontra seus professores, seus colegas, seu grupo. Estar junto com outras pessoas, apenas, não faz de você um animal social. Ir à escola é uma ação social porque agindo assim você está calculando (mesmo que não pense nisso conscientemente todos os dias) os custos e os benefícios que você terá indo ou, no caso inverso, deixando de ir. Ao ir à escola você emprega sua racionalidade e leva em consideração a racionalidade dos outros e o modo como ela interfere ou pode vir a interferir sobre seu próprio comportamento. Se você fosse puramente racional, poderia dizer: “minha finalidade na vida é ter dinheiro, mulheres (ou homens) à disposição e carros do ano, mas para isso preciso escolher a profissão que me dê mais renda o mais rápido possível; e o meio mais adequado para atingir este fim é ir à escola”.

Mas não precisa ser um cálculo que vise meramente seus interesses pessoais "egoístas", suas finalidades "exclusivamente individuais". Você pode calcular também com base por exemplo no valor que sua família dá à educação. Se em sua casa todos prezarem uma boa educação acima de tudo, será muito difícil pra você deixar de ir à escola, certo? Se um dia você cogitar abandonar os estudos, a primeira coisa que vai pensar será: “o que o pessoal lá em casa vai dizer disso?” Aliás talvez você nem cogite abandonar a escola, porque foi ensinado em casa desde criança que estudar ou que formar-se era algo importante. Levar isso em consideração também é uma forma de cálculo. Mas você pode calcular também com base, por exemplo, na satisfação ou no conforto pessoal que sente em ir à escola, mesmo que essa satisfação não esteja ligada diretamente a suas atividades estudantis. Você pode gostar da escola porque tem amizade com professores e colegas, ou porque arranjou uma namorada ou namorado lá.

Agir em sociedade, portanto, implica em algum grau de racionalidade (inclusive a total irracionalidade) por parte de quem age, e implica no fato de que esta racionalidade de cada indivíduo sempre está referida aos outros indivíduos que os cercam. Isso é fundamental para entender Weber.

Partindo do exemplo acima, quando você vai à escola pensando em se formar e ganhar dinheiro, você está praticando o que Weber chama de ação social racional com relação a fins. Um comportamento racional com relação a fins é aquele que se orienta por meios tidos como adequados (subjetivamente) para obter fins determinados, fins estes tidos por você como indiscutíveis (subjetivamente). Já se você for à escola porque sua formação familiar deu muita importância aos estudos, então você está praticando uma ação social racional com relação a valores. No caso, trata-se dos valores de sua família, ou então do modo como você os incorporou à sua própria hierarquia de valores. Finalmente, se você vai à escola apenas por causa dos amigos, dos professores ou da namorada ou namorado, para Weber você pratica uma ação social afetiva . Neste tipo de comportamento, você estaria sendo irracional, pois o que Weber chama de "racionalidade perfeita" é a adequação entre os meios de que você se vale para agir e os fins que você objetiva alcançar com esta ação. Na ação afetiva, você não leva em consideração objetivos a serem alcançados nem busca utilizar-se dos melhores meios para isso e portanto está sendo irracional. Suponha, finalmente, que você fosse à escola apenas porque todo mundo vai, e ficaria chato pra você, dentro do seu círculo de amizades, dizer que não freqüenta a escola. Nesse caso você volta a ser racional, praticando uma ação social racional com relação ao regular. Você estaria calculando com relação à média de comportamentos aceitos em seu grupo específico.

Tipo Ideal

Repare que Weber gosta de estabelecer tipos de ação. Só no parágrafo acima eu citei quatro tipos diferentes de ação social, sendo três racionais e um irracional. Mas, repare também que no dia-a-dia esses tipos não aparecem separadamente. Ninguém, na prática, vai à escola única e exclusivamente para namorar, nem mesmo só para ganhar o diploma e ganhar dinheiro. Essas coisas todas se confundem, se encaixam umas às outras. É muito possível que você vá à escola por todas ou quase todas essas razões que eu citei no exemplo. As razões se misturam. No entanto, é absolutamente fundamental isolar esses tipos "puros" de comportamento. Aliás, este é o método de Weber. Ele sabe perfeitamente que na prática empírica os tipos puros não existem, mas os constrói para que sirvam de referência.

Ei, alegre-se! Você está sendo apresentado a um dos mais importantes métodos de investigação das ciências sociais. A receita metodológica, passo a passo, é a seguinte:

1. Construa um tipo ideal "puro" (Weber construía vários: tipos de ação social, tipos de dominação política, etc). O tipo é uma construção mental, feita na cabeça do investigador, a partir de vários exemplos históricos. Ele é um exagero de perfeição, que jamais será encontrado na vida prática.

  1. Olhe o mundo social que o cerca, esta teia inesgotável de eventos e processos, e selecione dele o aspecto a ser investigado (não dá pra ser tudo, tem que ser uma coisa de cada vez).
  2. Compare o mundo social empírico com o tipo ideal que você construiu. Mas note bem: "ideal" aqui não significa "desejado", não significa "idealizado", como por exemplo idealizar o que seria uma "sociedade perfeita". Significa apenas que você escolhe as características mais "puras" dos tipos, e Weber achava que os tipos de conduta mais puros são os mais racionais, no sentido de adequação entre meios e fins.
  3. À medida em que você descreve o quanto a realidade se aproxima ou se distancia do tipo "puro" que você construiu essa realidade se apresenta a você, se revela em seu caráter mais complexo; os comportamentos vêm à luz revelando a racionalidade e a irracionalidade que os tornou possíveis.

Daí chegamos a um entendimento melhor do que seja a sociologia que ele chama de compreensiva: trata-se daquela que se refere à análise dos comportamentos movidos pela racionalidade dos sujeitos com relação aos outros.

Dominação e Burocracia

Historicamente, diz Weber, as associações políticas humanas, e o Estado em particular, passaram por um processo de institucionalização. Nesse processo, as regras foram se tornando cada vez mais racionais, isto é, foram sendo feitas com vistas a fins específicos (como a regra segundo a qual os negros não devem ser discriminados apenas pela cor de sua pele) e estabelecendo os meios mais adequados para leva-los a cabo (como as punições que vão de multas em dinheiro a meses de reclusão, que a lei anti-racismo prevê).

Ou seja, esta associação mais abrangente que é o Estado detém um poder de imposição. Tal poder se baseia numa influência específica – que Weber chama de dominação – de homens concretos sobre a "ação em associação" de outros homens. Tal influência, tal dominação, se baseia, por sua vez, entre outras coisas, na possibilidade de aplicação de uma coação (física ou psíquica). Agir segundo esses fins da associação, que são garantidos pela aplicação da coação, é agir segundo um "consenso". As possibilidades de que esse consenso seja de fato posto em prática na vida social serão tanto maiores quanto mais se puder esperar que os indivíduos que obedecem aos regulamentos o façam porque consideram obrigatória, também subjetivamente, a relação de dominação. Quer dizer, quando as pessoas obedecem as regras não apenas porque temem a punição, mas também porque estão convencidas da necessidade de obedecer, porque "introjetaram" a norma, Weber diz que a dominação baseia-se no consenso da legitimidade.

O fundamental aqui, em suma, não é o fato dos homens serem coagidos, mas sim o fato de agirem racionalmente, e de que esta racionalidade os faz consentirem com a dominação à qual estão sujeitos, para que possam com isso ganhar condições de previsibilidade com relação à ação dos outros homens que estão também sujeitos à mesma relação de dominação e, em decorrência, possam viver em sociedade.

O estabelecimento de uma ordem social "com relação a fins" (quer dizer, racional) vai se tornando então cada vez mais amplo. O consenso aí construído é obtido mediante regras e mediante coação, e uma crescente transformação das associações em instituições organizadas de maneira racional com relação a fins se opera na sociedade.

É este o sentido histórico do processo que Weber chama de racionalização.

A história humana, segundo ele, é um processo de crescente racionalização da vida, de abandono das concepções mágicas e tradicionais como justificativas para o comportamento dos homens e para a administração social. Pode-se compreender aqui o sentido de uma outra tipologia muito conhecida de Weber, a das formas de dominação legítima. Para Weber há três tipos puros de dominação legítima: a dominação tradicional, cuja legitimidade se baseia na tradição, a dominação carismática, cuja legitimidade se baseia no carisma do líder, e a dominação racional-legal, cuja legitimidade se baseia na lei e na racionalidade (adequação entre meios e fins) que está por trás da lei. Se a associação estatal passa por um processo de racionalização (e também de burocratização, porque para fazer cumprir as regras racionais é necessária uma burocracia cada vez mais complexa), as formas de dominação no ocidente caminham, tendencialmente, para o tipo racional-legal.

Permita-me recapitular o que foi dito até aqui, para que você entenda melhor a idéia de racionalização e suas implicações para a sociologia da educação weberiana. Diferentemente da concepção organicista de Durkheim e da concepção materialista de Marx, a sociologia histórica de Max Weber parte da ação e da interação dos indivíduos – na base das quais estão também conjuntos de valores compartilhados – como constitutivas da sociedade. Quanto mais complexas as sociedades, isto é, quanto maior sua racionalização, argumenta Weber, maior o número de regulamentos sociais a serem obedecidos. Quanto mais complexa a sociedade, mais conflitiva tende a ser a interação entre os indivíduos e grupos, uma vez que maiores serão as “constelações de interesses” que se contrapõem e maior também a necessidade de regulamentá-los. Ao contrário de Durkheim, em Weber a complexificação gera conflito, o que por sua vez gera a necessidade da regra. A regulamentação mais desenvolvida das lutas em sociedade aparece em Weber como um aparato especializado de domínio, que é o Estado moderno. O ingresso dos indivíduos nesta grande associação, na qual estão obrigados a submeter-se ao poder já instituído, não é voluntário e as regras são feitas, diz ele, por meio da força, da imposição da vontade de alguns indivíduos e grupos sobre outros indivíduos e grupos. Para resumir em duas palavras: uns mandam, outros obedecem e a esse processo Weber chama de dominação. Para legitimar-se, isto é, para garantir a aceitação dos comandados, a dominação se baseia ou na tradição, ou no carisma do líder ou na força do direito racional. No caso da tradição e do carisma, a dominação se exerce pelo domínio dos líderes sobre os dominados, que obedecem por que foram educados (ou seja, compartilharam de uma tradição) ou porque julgam que o líder tenha dotes sobrenaturais (que Weber chama de carisma). Mas no último caso, que é o das sociedades modernas e complexas, a obediência não é devida à figura do líder, mas à posição que ele ocupa no aparato de dominação, devidamente garantida por uma legislação de caráter racional. O exercício da autoridade racional depende de um quadro administrativo hierarquizado e profissional, que se caracteriza pela existência de uma burocracia. É este o sentido histórico do processo que Weber chama de racionalização das sociedades: uma crescente transformação dos modos informais e tradicionais de extração de obediência em instituições organizadas racionalmente, impessoalmente e legalmente para a obtenção desta obediência.

A educação para Weber, ao que me parece, é o modo pelo qual os homens – ou determinados tipos de homens em especial – são preparados para exercer as funções que a transformação causada pela racionalização da vida lhes colocou à disposição.

A lógica da racionalidade, da obediência à lei e do treinamento das pessoas para administrar as tarefas burocráticas do Estado foi aos poucos se disseminando. Na formação do Estado moderno e do capitalismo moderno, que são inseparáveis um do outro, Weber dá especial atenção a dois aspectos: de um lado, a constituição de um direito racional, um dos pilares do processo de racionalização da vida, e de outro, a constituição de uma administração racional em moldes burocráticos. O direito racional oferece as garantias contratuais e a codificação básica das relações de troca econômica e troca política que sustentam o capitalismo e o Estado modernos, enquanto que o desenvolvimento da empresa capitalista moderna oferece o modelo para a constituição da empresa de dominação política própria do capitalismo, o Estado burocrático.

E aqui é que se torna mais claro o modo como Weber pensa a educação. A educação sistemática, analisa ele, passou a ser um "pacote" de conteúdos e de disposições voltadas para o treinamento de indivíduos que tivessem de fato condições de operar essas novas funções, de "pilotar" o Estado, as empresas e a própria política, de um modo "racional". Um dos elementos essenciais na constituição do Estado moderno é a formação de uma administração burocrática em moldes racionais. Tal processo só ocorreu de modo completo no Ocidente, onde houve a substituição paulatina de um funcionalismo não especializado e regido por orientações mais ou menos discricionárias (não baseadas em regras), por um funcionalismo especificamente treinado e politicamente orientado com base em regulamentos racionais.

Para Weber a burocracia é a mais bem acabada forma de dominação legítima e racional. A burocracia baseia-se na crença na legalidade ou racionalidade de uma ordem. A burocracia mais eficaz de exercer a dominação. E é uma conseqüência do processo de racionalização da vida social moderna, sendo responsável pelo gerenciamento concentrado dos meios de administração da sociedade. A burocracia é uma forma de organizar o trabalho, é um padrão de regras para organizar o trabalho em sociedades complexas. A modernização para ele é o processo de passagem de uma perspectiva mais tradicional do mundo (em que as coisas são dadas) para uma perspectiva mais organizada (onde as coisas são elaboradas, construídas).


REFERÊNCIAS

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 4ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1993.

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2ª ed. - São Paulo: Moderna, 1997.

TOSI, Alberto. Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2000. - Coleção “O que você precisa saber sobre...”