Podemos
dizer que a Sociologia brasileira começa a “engatinhar” a partir da década de
1930, vindo a se fortalecer nas décadas seguintes.
Apesar
de alguns autores da sociologia dizerem que não há uma data correta que marca o
seu começo em solo brasileiro, essa época parece ser a mais adequada para se
falar em início dos estudos sociológicos no Brasil.
Quando
dizemos “data mais adequada”, é porque as produções literárias que surgem a
partir dessa década (1930) começam a demonstrar um interesse na compreensão da
sociedade brasileira quanto à sua formação e estrutura.
Mas
note, não estamos afirmando que antes da data acima ninguém havia se proposto a
entender nossa sociedade. Antes da década de 1930 muitos ensaios sociológicos
sobre o Brasil foram elaborados por historiadores, políticos, economistas, etc.
No entanto, na maioria destes trabalhos, os autores apresentavam a tendência de
escrever sobre raça, civilização e cultura, mas não tentavam explicar a
formação e a estrutura da sociedade brasileira.
A
partir de 1930, surge no Brasil um período no qual a reflexão sobre a realidade
social ganha um caráter mais investigativo e explicativo.
Esse caráter mais investigativo e
explicativo foi impulsionado pelos muitos movimentos que estimularam uma
postura mais crítica sobre o que acontecia na sociedade brasileira. Dentre
alguns destes movimentos estão o Modernismo, a formação de partidos (sobretudo
o partido comunista) e os movimentos armados de 1935.
Movimentos
como esses, de alguma forma, traziam transformações de ordem social, econômica,
política e cultural ao país, e despertavam o interesse de pensadores em dar explicações
a tais fenômenos. Aos poucos a Sociologia passa a constituir-se como uma forma
de reflexão sobre a sociedade brasileira. Veja como isso aconteceu:
Fases da sua implantação
Dividindo
os acontecimentos da implantação da Sociologia no Brasil como ciência, em
fases, ou em geração de autores, de acordo com o sociólogo brasileiro Otávio
Ianni (1926-2003), destacamos aqui três delas, as quais se complementam:
A fase “A” da implantação da
Sociologia no Brasil:
A
primeira geração da Sociologia brasileira seria composta por aqueles autores
que se preocuparam em fazer estudos históricos sobre a nossa realidade, com um
caráter mais voltado à Literatura do que para a Sociologia.
Desta
geração de autores, queremos destacar Euclides da Cunha (1866-1909). Cunha
nasceu no Rio de Janeiro, foi militar engenheiro, além de ter estudado
Matemática e Ciências Físicas e Naturais. Porém, o que gostava de fazer, como
profissional, era o jornalismo.
Em 1895,
abandonou o Exército e começou a trabalhar como correspondente do jornal “O
Estado de São Paulo”. Nessa função foi enviado para a Guerra de Canudos, no
interior da Bahia, de onde surgiu sua maior contribuição à Sociologia
brasileira: o livro Os Sertões.
Se
analisarmos este livro pelo enfoque literário, podemos perceber que Cunha faz,
usando seus conhecimentos de Ciências e Físicas Naturais, relatos sobre como
era a terra e a paisagem de Canudos. Também faz a descrição dos homens que ali
viviam, ou seja, os sertanejos, nos quais percebe que, ao contrário do que
pensava antes de conhecê-los, eram fortes e valentes, ainda que a aparência dos
mesmos não demonstrasse isso.
Por fim,
Cunha descreve a guerra, isto é, como foi que o governo da época conseguiu
acabar com o que considerava ser uma revolução que reivindicava a volta do
sistema monárquico no Brasil. Na verdade Antonio Conselheiro (o líder da
Revolução de Canudos) e seus seguidores apenas defendiam seus lares, sua
sobrevivência.
“É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da República...” Diziam-no
informes surpreendedores; aquilo não era um arraial de bandidos truculentos
apenas. Lá existiam homens de raro valor – entre os quais se nomeavam
conhecidos oficiais do exército e da armada, foragidos desde a Revolução de
Setembro, que o Conselheiro avocara ao seu partido.” (CUNHA, 1979: 250).
Olhando
mais pelo lado sociológico, podemos perceber que Cunha estava fazendo
revelações quanto à organização da República que estava sendo consolidada.
Canudos era um retrato de uma sociedade republicana que não conseguia suprir as
necessidades básicas de seu povo.
Coisa que
Antonio Conselheiro, com sua maneira missionária de ser, acreditava e lutava
para acontecer, pois...
“...abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos
do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o
cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros
os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência que lhes fora a
própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e
pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade
eterna”. (CUNHA, 1979: 132 ).
Após duas
tentativas sem sucesso de “tomar” Canudos – pois os sertanejos tornavam difícil
a vida dos soldados, por conhecerem muito bem a caatinga sertaneja – o governo
federal republicano deixou de subestimar a força daquelas pessoas que se uniram
a Conselheiro.
Convocou
para uma terceira expedição batalhões armados de vários estados brasileiros e
promoveu uma grande guerra e matança naquela região, em prol da República.
A observação
de Euclides da Cunha e as revelações que faz quanto à sociedade brasileira em Os
Sertões, transforma esta obra em um dos referenciais de início do
pensamento sociológico no Brasil.
A fase “B” da implantação da
Sociologia no Brasil:
Numa
segunda fase de geração de autores, a preocupação em se fazer pesquisas de
campo, que é uma característica das pesquisas sociológicas, começa a ser levada
em conta.
Existem
vários autores desta geração que poderíamos referenciar, como Gilberto Freyre,
Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo, Nelson
Wernek Sodré, Raymundo Faoro, etc.
No
entanto, vamos nos fixar em dois deles, os quais podem ser vistos como
clássicos do pensamento social brasileiro: Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior.
Gilberto
Freyre foi o autor de Casa Grande & Senzala (1933), livro no qual
demonstrou as características da colonização portuguesa, a formação da
sociedade agrária, o uso do trabalho escravo e, ainda, como a mistura das raças
ajudou a compor a sociedade brasileira.
Freyre
foi um sociólogo que nasceu em Pernambuco no ano de 1900 e, no desenvolver de
sua profissão, criou várias cátedras de Sociologia, como na Universidade do
Distrito Federal, fundada em 1935. Freyre faleceu em 1987.
Quando
escreveu Casa Grande & Senzala tinha 33 anos e, anti-racista que
era, inaugurou uma teoria que combatia a visão elitista existente na época,
importada da Europa, a qual privilegiava a cor branca. Segundo tal visão
racista, a mistura de raças seria a causa de uma formação “defeituosa” da
sociedade brasileira, e um atraso para o desenvolvimento da nação.
Freyre
propõe um caminho inverso. Em Casa Grande & Senzala ele começa
justamente valorizando as características do negro, do índio e do mestiço
acrescentando, ainda, a idéia de que a mistura dessas raças seria a “força”, o
ponto positivo, da nossa cultura.
Este
autor forneceu, para o seu tempo, uma nova maneira de ver a constituição da
nacionalidade brasileira, isto é, o Brasil feito por uma harmoniosa união entre
o branco (de origem européia), o negro (de origem africana), o índio (de origem
americana) e o mestiço, ressaltando que essa “mistura” contribuiu, em termos de
ricos valores, para a formação da nossa cultura.
Veja alguns trechos de sua obra a
este respeito:
“Um traço importante de
infiltração de cultura negra na economia e na vida doméstica do brasileiro
resta-nos acentuar: a culinária” (FREYRE, 2002)
“Foi ainda o negro quem animou a
vida doméstica do brasileiro de sua maior alegria.” (FREYRE, 2002)
“Nos engenhos, tanto nas
plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa... carregando sacos
de açúcar... os negros trabalhavam sempre cantando.” (FREYRE, 2002).
No
entanto, vale ressaltar aqui que Gilberto Freyre tinha um “olhar” aristocrático
e conservador sobre a sociedade brasileira, pois além de justificar as elites
no governo, sua descrição do tempo da escravidão em Casa Grande &
Senzala adquire uma conotação harmoniosa, ele não via conflitos nessa
estrutura.
Mas se
para Gilberto Freyre era um erro pensar que a mistura das raças seria um atraso
para o Brasil, há um outro autor que se propôs a verificar qual seria e onde
estaria a origem do atraso da nação brasileira.
Estamos
falando de Caio Prado Júnior. Este autor vai nos fornecer uma visão muito mais
crítica sobre a formação da nossa sociedade. Veja por quê.
Enquanto
Gilberto Freyre fazia uma análise conservadora da formação da sociedade
brasileira, Caio Prado recorria à visão marxista, isto é, partindo do ponto de
vista material e econômico para o entendimento da nossa formação.
Caio
Prado Júnior nasceu em
1907 e faleceu em 1990. Formou-se em direito e, de forma autodidata, leu e
tomou para si os ideais de Marx, o que o fez uma pessoa comprometida com o
Socialismo.
Caio
Prado também era uma espécie de “contra-mão” do Partido Comunista Brasileiro no
seu tempo, pois um dos militantes daquele partido, Octávio Brandão (1896-1980),
havia escrito um livro na década de 1920, chamado Agrarismo e Industrialismo
no qual apresentava a tese de que o atraso do Brasil, em termos econômicos,
estava no fato dele ter tido um passado feudal. E esta tese continuou a ser
defendida pelo PCB com o historiador Nelson Wernek Sodré (1911-1999),
que interpretava o escravismo, no Brasil Colonial, como uma característica do
feudalismo.
É por
essa razão que Caio Prado era contrário ao Partido Comunista, pois a idéia de
que no passado o Brasil havia sido feudal era “importada” do marxismo oficial,
da Europa, e que na sua opinião, não funcionava aqui. E, para Caio Prado, a
prova disso estaria no fato de que no sistema feudal o servo não era
considerado uma mercadoria, coisa que ocorria aqui com os escravos, o que
denota uma característica do sistema capitalista (e não feudal) no que tange à
análise da mão-de-obra.
No seu
livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, Caio Prado
apresenta a tese de que a origem do atraso da nação brasileira estaria
vinculada ao tipo de colonização a que o Brasil foi submetido por Portugal,
isto é, uma colonização periférica e exploratória.
Traduzindo
para melhor compreendermos... Caio Prado explica que Portugal teve grande
contribuição no “nosso atraso” como nação, pois o centro do capitalismo, na
época do “descobrimento” do Brasil, estava na Europa, o que fazia com que as
riquezas daqui fossem levadas para lá. Este tipo de organização econômica foi
denominado de primária e exportadora, pois os produtos extraídos
das monoculturas brasileiras, nos latifúndios, eram exportados para os países
que estavam em processo de industrialização.
Segundo
Caio Prado, a América era vista pelos europeus como sendo
“...um território primitivo habitado por rala
população indígena incapaz de fornecer qualquer coisa de realmente
aproveitável. Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se
podia fazer como nas simples feitorias comerciais, com um reduzido pessoal
incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso
ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias
que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem ao seu
comércio. A idéia de povoar surge daí, e só daí”. (PRADO JÚNIOR, 1942: 24).
As teses
desse autor rompem com as análises dos autores que antes dele apresentaram um
pensamento conservador restrito, isto é, de reprodução daquilo que estava posto
na sociedade brasileira e, conseqüentemente, sem a intenção de apresentar
propostas para sua transformação.
Assim
sendo, segundo a visão de Caio Prado, Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala,
pode ser considerado “conservador”. Veja porque:
a) seus escritos nos levam a
pensar que a miscigenação acontecia sempre de maneira harmoniosa. Mas e a
relação entre os senhores brancos e suas escravas negras, por exemplo? Se
verificarmos relatos da história veremos que as negras eram forçadas a terem
relações sexuais com eles, o que é bem diferente de harmonia.
b) sobre os problemas sociais da
época, Freyre não apresenta nenhuma proposta para a solução dos mesmos, ou para
a transformação da sociedade.
Para Caio
Prado Júnior, os pontos “a” e “b” mencionados acima demonstram a postura
conservadora de Gilberto Freyre, pois transparece certo conformismo com a
situação em que se apresentava a sociedade. Conformismo que pressupõe
continuidade, sem transformação.
E a fase “C” da implantação da
Sociologia no Brasil:
Já a
partir dos anos de 1940 novos sociólogos começam a aparecer no cenário
brasileiro.
Esta
terceira geração é formada por sociólogos que vieram de diferentes instituições
universitárias, fundadas a partir de 1930 e inauguram estilos mais ou menos
independentes de fazer Sociologia.
Começam a
surgir estilos ou tendências, o que fez com que surgissem diferentes “escolas”
de Sociologia em São Paulo, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte e
em outros lugares.
Dentre os
autores que fazem parte dessa terceira geração, podemos citar: Florestan
Fernandes (1920-1995), importante nome da Sociologia crítica no Brasil. Foi
um sociólogo que fez um contínuo questionamento sobre a realidade social e das
teorias que tentavam explicar essa realidade. O objetivo deste autor foi de,
numa intensa busca investigativa e crítica, ir além das reflexões já
existentes.
Florestan
também mantinha contínuo diálogo com o pensamento crítico brasileiro. Autores
como Euclides da Cunha e Caio Prado Júnior, os quais vimos anteriormente, fazem
parte de sua lista de interlocutores. O diálogo com esses autores foi
fundamental para o seu trabalho de análise dos movimentos e lutas existentes na
sociedade, principalmente aquelas travadas pelos setores populares.
Outro
aspecto de sua maneira crítica de fazer Sociologia foi a sua afinidade com o
pensamento marxista, principalmente sobre o modo de analisar a sociedade, o que
se constituiu numa espécie de “norte” crítico orientador de seu pensamento.
As
transformações sociais que ocorreram a partir de 1930 no Brasil foram, também,
uma espécie de “motor” para os trabalhos de Florestan. Mas não apenas para ele,
pois como já mencionamos, essas transformações serviram de impulso para os
trabalhos sociológicos no Brasil como um todo. E isso se deu principalmente a
partir de 1940, pois essas transformações se intensificaram muito por causa do
aumento da industrialização e da urbanização.
Algumas
das conseqüências da urbanização, inclusive gerada pela migração de pessoas
que, vindas do campo, procuravam trabalho nas indústrias das grandes cidades,
foram o surgimento de problemas de falta de moradia, desemprego e
criminalidade. Essas situações emergentes, logicamente, tornavam-se temas para
a análise sociológica.
Para
finalizar, vale ressaltar que a Sociologia crítica que Florestan inaugura
também tinha o “olhar” voltado aos mais diversos grupos e classes existentes na
sociedade. Algumas de suas pesquisas com grupos indígenas e sobre as relações
raciais em São Paulo, por exemplo, tiveram o mérito de fornecer explicações que
se contrapunham às explicações dadas pelas classes dominantes da sociedade
brasileira.